“Em relação à Convenção do Clima de 1992, o Acordo de Paris, que juridicamente deveria ser mais um passo para a implementação do regime, acabou operando, sem dúvida, uma erosão do conceito de diferenciação e a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos, principais ‘emissores’ históricos”, adverte a pesquisadora.
Foto: Envolverde
|
Por Patricia Fachin – Instituto Humanitas Unisinos (IHU On –Line)
O debate que permeia as Conferências do Clima, a exemplo da COP-21, que ocorreu nas duas primeiras semanas deste mês em Paris, não discute claramente “a principal questão em jogo sob o debate ‘do clima’”, a saber, que “temos um sistema-mundo e uma civilização construídos historicamente com base nos combustíveis fósseis, que são finitos”, frisa Camila Moreno à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Camila, que participa das Conferências do Clima desde 2008, critica o fato de as palavras “fóssil, petróleo, carvão ou gás” não aparecerem no relatório final da COP-21. Para ela, isso indica que “o acesso, extração, refino e transporte das reservas fósseis disponíveis são definidores, em grandes linhas, da geopolítica internacional e os custos destas operações (dolarizadas) são estruturantes da economia globalizada e têm impactos em cadeia, que atravessam vários setores da economia, mas também da política: a estabilidade (ou não) de regimes políticos em vários países está construída em cima da disponibilidade e controle de recursos fósseis”.
Camila pontua ainda que “em nome do clima, políticas públicas são transformadas em ‘planos de negócios’, desenhadas para atrair investimentos, onde a gestão de ‘países’ é equiparada a de ‘empresas’. Nesta ótica, as políticas públicas passam a ser apresentadas como investimentos que podem dar retorno financeiro”, critica.
Camila Moreno é formada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS, mestre em Sociologia pelo CPDA/UFRRJ e doutoranda na mesma instituição. É autora, juntamente com Daniel Speich e Lili Fuhr, de Carbon Metrics: global abstractions and ecological epistemicide (2015) (A métrica do carbono: abstrações globais e epistemicídio ecológico).
É pesquisadora do CPDA/UFRRJ, membro do Grupo Carta de Belém
Confira a entrevista.
Foto: www.epsjv.fiocruz.br
|
IHU On-Line - Que avaliação faz do acordo final da COP-21? Em que pontos ele é frágil?
Camila Moreno - As avaliações críticas sobre o Acordo têm apontado em geral que ele é frágil, pois representa ‘muito pouco, muito tarde’ (too little, too late) em termos de colocar nos trilhos um plano global efetivo de combate às mudanças climáticas. Várias análises ecoam a baixa ‘ambição’ dos termos do Acordo em limitar as emissões de gás carbônico, já que este não estabelece metas globais absolutas de redução, mas se baseia nos compromissos expressos nas contribuições nacionalmente determinadas, submetidas pelos países. Em função disso, já estaríamos irremediavelmente no caminho do aquecimento de pelo menos 3°C da temperatura do planeta, com todos os impactos catastróficos previstos nos cenários projetados etc. Dentro desta narrativa dominante, construída em torno do reducionismo da métrica carbonocêntrica e da objetividade expressa e verificada em graus Celsius, baseada na ‘correlação’ entre o aumento de partes por milhão (ppm) de gás carbônico na atmosfera e o aumento da temperatura em relação aos registros pré-industriais, neste sentido, sim, o Acordo seria ‘frágil’. Contudo, mesmo sob esta visão, em si já muito restrita do escopo do Acordo, um esforço minimamente crítico de reflexão já revela pontos muito preocupantes para avaliar se ele é frágil ou não.
Ciência do clima, desenvolvimento e política
O discurso de Ban Ki Moon na plenária final da manhã de sábado (12/12), antes de o Ministro Fabius distribuir a versão final de proposta de texto para o Acordo, foi duríssimo neste sentido: de agora em diante temos que fazer ‘o que a ciência nos dita’ (what science dictates us). Ditadura da ciência? Acho que este entendimento, que vai se naturalizando através da forma como foi construída a narrativa que pretende reduzir todos os graves e reais problemas ambientais a uma dimensão ‘climática’, é muito problemático. Contudo, este é um tema que apesar de central ao debate e suas implicações políticas, permanece em grande medida deixado de lado por temor da associação ao ceticismo ou negacionismo climático. Acho que não é disso que se trata.
Os ‘cenários de mitigação’ para as diferentes metas de temperatura em questão já preveem embutidos os diferentes ‘custos de abatimento’ de emissões dentro das ‘opções de mitigação’ disponíveis. Ou seja, quando se faz referência aos cenários de 2°C de ‘menor custo’ (least-cost) para redução de gás carbônico, este cenário já é calculado contando com o uso desta ou daquela tecnologia (ou pacote tecnológico).
Sabemos que as tecnologias não são neutras e que materializam uma visão de mundo e de sociedade. Sabemos também que tecnologias oferecem uma ferramenta para o exercício do poder. Em uma sociedade largamente determinada hoje pela Microsoft, Google e Facebook, acho que isso é meio autoevidente. No mundo moderno a ciência é um campo indiscutível de exercício de poder. O discurso atual confunde isso e coloca a ‘ciência’ (que na verdade é ‘tecnociência’ – ou seja, ninguém faz pesquisa ‘pura’, dissociada de potenciais retornos econômicos/comerciais/industriais e das patentes) acima mesmo da política.
Métrica do carbono
Para começar, é preciso olhar de forma crítica a ‘métrica do carbono’, como ela é constitutiva da construção da entidade ‘clima’ e da narrativa das mudanças climáticas (como se estas abarcassem e resumissem toda a amplitude e multidimensionalidade da crise ambiental, bem concreta e real) que está na base das políticas ‘de clima’, que passa a ser transversal aos mais variados âmbitos: energia, florestas, infraestrutura, habitação, saúde, agricultura. Tudo está perpassado pela agenda climática. No Acordo (de fato no preâmbulo das Decisões da COP que acompanham o acordo) a agenda do desenvolvimento e do financiamento ao desenvolvimento foi fundida com a agenda climática. Como destacou ainda na sessão de abertura da COP o ministro peruano Manuel Pulgar Vidal — que presidiu a COP de Lima em 2014 e foi convidado pelo Ministro francês Laurent Fabius para ajudar no processo, com o Acordo de Paris, juntamente com a Agenda de Ação de Addis Abeba, referente ao resultado da Terceira Conferência Internacional sobre o Financiamento ao Desenvolvimento e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS —, a comunidade internacional chega ao final de 2015 com a formatação de um novo paradigma de desenvolvimento. Nos ODS, os países incluíram, entre os objetivos específicos para medir o avanço dos países em direção ao desenvolvimento sustentável, “tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos” (objetivo 13). [1]
“Nesta etapa, a crise ambiental é transformada em oportunidade de negócios”
|
IHU On-Line - Quais foram os pontos fortes da COP-21 e, de outro lado, os pontos em que houve maiores dificuldades de se chegar a acordos? Ainda sobre essa questão, em que pontos poderia ter se avançado mais durante a negociação?
Camila Moreno - Em primeiro lugar, é importante contextualizar o Acordo em um movimento muito maior e que trata da nova arquitetura internacional do financiamento ao desenvolvimento, reengenharia da economia e do comércio internacional e governança internacional – este, aliás, um tema de fundo muito preocupante, onde atores ‘não-estatais’ tais como corporações, cidades e ‘coalizões’ de países ou mistas, com setor privado e financeiro, governos e organizações internacionais, vão galgando espaço em instâncias e processos decisórios internacionais. Ao mesmo tempo que o Acordo de Paris foi celebrado como a vitória do multiIateralismo, mostrando que a ‘comunidade internacional’ pode dar uma resposta efetiva e coordenada aos problemas globais, é preciso enxergar que o conceito de ‘comunidade internacional’ sob a ONU está em transformação e que isso não é necessariamente bom. Sob o mote da pressão para a ‘ação climática’, há diferentes tipos de interesses envolvidos.
Sob outra perspectiva - a que procura entender a economia política, ou melhor, a ecologia política - do que está realmente em jogo e que vem sendo subsumido sob o genérico ‘clima’, o Acordo de Paris foi muito forte: ele aponta como e por onde vão se construindo as novas equações de dependência, e por que não, como se atualizam as velhas relações coloniais. [2]
É muita ingenuidade achar que o que está em jogo ali é de fato ‘o clima’. Do ponto de vista da construção da hegemonia, o Acordo tem um papel forte, na minha opinião, na medida em que consolida, no marco multilateral, as bases para uma transição necessária e que possa garantir, assegurar e ampliar a reprodução do capitalismo neste século. Neste horizonte, em Paris foi dado mais um passo em cristalizar a premissa fundamental deste processo, no caminho de incorporar a abstração global ‘carbono’ como unidade de medida para a economia internacional. Acho que não devemos subestimar ou tomar apenas em sentido metafórico que o Banco Mundial vem, há anos, reiterando que ‘o carbono será a moeda do século XXI’.
Sob o discurso genérico do ‘clima’ vemos como vai se consolidando a visão dos atores e interesses dominantes. Entre esses, por exemplo, o fortíssimo lobby nuclear, um tema central, pois é promovido como a grande fonte energética que poderia fornecer ‘carga de base’ (baseload) para complexos industriais e de transporte. Além disso, temos a indústria da chamada big data, o complexo militar e de defesa, as empresas de seguro e resseguro e o mundo de consultores/consultorias internacionais, os quais, além de medir, reportar, verificar, certificar, etc. o ‘carbono’, vêm atuando na formulação das contribuições nacionais (INDCs) e estratégias de baixo carbono de muitos países.
Nessa onda, em nome do ‘clima’, políticas públicas são transformadas em ‘planos de negócios’, desenhadas para atrair investimentos, onde a gestão de ‘países’ é equiparada a de ‘empresas’. Nesta ótica, as políticas públicas passam a ser apresentadas como investimentos que podem dar retorno financeiro. Isso precisa ser lido, também, em relação à dificuldade de financiamento dos Estados, que não têm mais como arrecadar e se financiar. Daí a necessidade de ajustes e reformas fiscais para uma economia de baixo carbono. Isso, claro, em um contexto onde a lógica do pagamento da dívida externa e dos seus juros segue sendo estruturante – embora as propostas de auditoria cidadã e de questionar sua legitimidade tenham saído das pautas contestatórias da maioria dos movimentos. A agenda do clima, além de não questionar isso, vem, na prática, criando novas condições e modalidades de fazer dívida.
IHU On-Line - Como você analisa a frase do presidente francês, François Hollande, no encerramento da COP-21, ao afirmar que “o mundo mudou. Nós entramos na era do baixo carbono, um movimento poderoso e irreversível”. Você faz a mesma avaliação? O que significa, na prática, entrar na era de baixo carbono?
Camila Moreno - Em primeiro lugar, acho que aqui cabe uma observação. Esta é mais uma frase de efeito, repetindo os mantras e jargões típicos dos discursos políticos cuidadosamente elaborados por profissionais da propaganda e marketing. A plenária do final da manhã de sábado, já na prorrogação do prazo inicial para o encerramento da COP e antes da presidência francesa distribuir sua proposta para o texto final do Acordo, foi um encadeado de discursos, todos desta estirpe, todos lidos (Fabius, Figueiras, Ban Ki Moon e Hollande) para a plateia.
Paris foi um momento importante de cristalização de um consenso que vem sendo construído há alguns anos – e que teve um momento importante durante a Rio+20 - e que tem muito mais a ver com a reformulação do discurso hegemônico e com a reafirmação dos seus atores e instituições do que propriamente uma sinalização em direção a uma transformação do sistema atual.
Tal como expresso nas INDCs submetidas por dezenas de países, e que vêm, através da ‘ação climática’, integrando e promovendo o ajuste estrutural de políticas domésticas em seus mais variados âmbitos. Este ajuste é necessário para criar e garantir as condições de reprodução e acumulação do daqui para frente. Nesta etapa, a crise ambiental é transformada em oportunidade de negócios. Definida como a maior falha do mercado, tal como vaticinou em 2006 o Relatório Stern sobre a Economia das Mudanças Climáticas, parece que se trata de internalizar as externalidades, colocar o preço correto e enviar para esta entidade chamada ‘mercados’ o sinal de preços correto. Claro que isso passa por incorporar a lógica e aos circuitos econômicos os ativos do ‘capital natural’ (carbono, água, biodiversidade) que serão também integrados aos mercados financeiros.
O que não se discute claramente é que a principal questão em jogo sob o debate ‘do clima’ é que temos um sistema-mundo e uma civilização construídos historicamente com base nos combustíveis fósseis, que são finitos. Estes devem ser vistos como principal fonte de energia da economia internacional, mas também como matéria-prima da indústria – pense nos plásticos, têxteis, embalagens e em toda a petroquímica! Apesar disso, a palavra ‘fóssil’ (assim como petróleo, carvão ou gás) não aparece nenhuma vez no texto. Nesta perspectiva, o acesso, extração, refino e transporte das reservas fósseis disponíveis são definidores, em grandes linhas, da geopolítica internacional e os custos destas operações (dolarizadas) são estruturantes da economia globalizada e têm impactos em cadeia, que atravessam vários setores da economia, mas também da política: a estabilidade (ou não) de regimes políticos em vários países está construída em cima da disponibilidade e controle de recursos fósseis.
Outro elemento importante é que a fronteira das ‘inovações’ tecnológicas é movida pela maior indústria internacional: a militarização e a guerra. Nenhum pacote tecnológico hoje (junto com suas patentes e royalties) pode ser dissociado disso. A ‘economia do clima’, por exemplo, se baseia em um gigantesco arsenal para medir, reportar e verificar o ‘carbono’ e a ‘redução de emissões’ com o uso de satélites, cartografias e georreferenciamento, infraestrutura massiva de geração, armazenagem e processamento de dados (big data), softwares, drones etc. A promoção da energia nuclear entra nesta equação também porque é considerada pelo IPCC como ‘carbono neutra’. A França, país que hospedou a COP-21, tem mais de 80% de sua matriz dependente de energia nuclear. Além disso, para ‘combater as mudanças climáticas’, há uma série de propostas arriscadas e perigosas de geoengenharia.
“A estrutura do Acordo precisa ser lida e compreendida em seu conjunto, mais além da linguagem tecnocrata, e no jargão climático de acrônimos”
|
IHU On-Line - Como as questões dos Direitos Humanos, direitos dos povos indígenas, Transição Justa, equidade de gênero foram tratadas na COP-21? Essas questões aparecem no relatório final?
Camila Moreno - A inclusão ou retirada destas expressões ocupou grande parte da atenção da sociedade civil que seguia as negociações. No final, estas referências, e até outras, como Mãe Terra (Mother Earth) e “justiça climática”, aparecem arroladas em um par de parágrafos no preâmbulo. Também temos na INDC brasileira estas referências no preâmbulo: “O Governo brasileiro está comprometido com a implementação da INDC com pleno respeito aos direitos humanos, em particular os direitos das comunidades vulneráveis, das populações indígenas, das comunidades tradicionais e dos trabalhadores nos setores afetados por políticas e planos correspondentes, e promovendo medidas sensíveis a gênero”.
Isso é a retórica. Agora no mundo real, temos o que está acontecendo com as populações afetadas pelas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira, as múltiplas violações de Belo Monte, movimentos como a tentativa de emplacar a PEC 215, as constantes e reiteradas tentativas de avançar na flexibilização do licenciamento ambiental etc. Durante os dias em que se estava realizando a COP, tivemos a notícia esdrúxula de que a própria presidente do Ibama tem uma ‘visão’ de longo prazo na qual vê oautolicenciamento ambiental das empresas, com fiscalização posterior.
Apesar da referência dos termos no preâmbulo, o que isso garante de fato e na prática? A estrutura do Acordo precisa ser lida e compreendida em seu conjunto, mais além da linguagem tecnocrata, e no jargão climático de acrônimos. O Acordo, independente da frágil força legal, é uma peça importante e forte no sentido de que materializa o discurso hegemônico sob o respaldo de um consenso internacional, produzido no âmbito multilateral, e que representa um horizonte de ação e também um horizonte de sentido. Em relação à Convenção do Clima de 1992, o Acordo de Paris, que juridicamente deveria ser mais um passo para a implementação do regime, acabou operando sem dúvida uma erosão do conceito de diferenciação e a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos, principais ‘emissores’ históricos. Isso é muito sério, pois era, ou deveria ser um princípio basilar sobre o qual a Convenção foi escrita.